quem sou eu

17.11.11

Lado a lado

Na fria cidade de Zagreb - quando eu queria dizer Bergaz ao contrario, nao ha atrativo - de atrair sentimento, de provocar sensacao, de dar curiosidade. Beleza modesta em poucos quarteiroes. A feira de flores lembrou-me a Holanda. O mercado de verduras e frutas poderia ser qualquer outro, nao fossem as senhoras com rostos enrrugados e lencos de flores na cabeca a venderem seus artesanatos, cestas de vime, colheres de pau, coracoes croatas com bordado 'a mao, xicaras, pires e pratos de parede. Haviam tambem alguns daqueles brinquedos de madeira que nossa mae nos contava ter brincado na sua infancia. 
Como todo pais em desenvolvimento, a simplicidade e o crescimento estao lado a lado, um anulando o outro, e sobrou-me o frio, denso, pesado, porem cheio de luz. 

No apartamento dos tios da Maja, na periferia do sul da cidade, muitos elogios. "como ela sorri", "como aprende rapido", "como tem prazer ao comer!", "como e' delicada", "e' casada? senao vai perder o marido logo", "vem nos visitar mais vezes?", "quer levar o biscoito de nozes com canela e o licor de cerejas?" e tantas outras perguntas que Maja traduzia enquanto eu olhava para a expressao nos rostos daqueles falantes de uma lingua rustica e contida nas entonacoes. Pensei o quanto minha presenca trouxera naquela casa, famila de cinco pessoas, que pouco sorriem, tampouco saem pelo mundo, que repetem as mesmas coisas todos os dias e veem o mundo atraves de seus atlas e enciclopedias.

O irmao da amiga da Maja que faz piercing e tatuagem, suicidou-se aos 20 anos. O pai dele era alcolatra e 20 anos depois, a mae viciou-se, nao so' no alcool como tambem no cigarro. Passamos uma noite na casa dela no interior de Zagreb. Quadros empoeirados, cortinas rendadas encardidas, tapete rasgado com bordados manchados, foto do marido, um altar para o filho e um quadro da filha quando "mocinha" pendurados na parede da sala. Participara do concurso miss-do-melhor-vestido na escola, era realmente linda como beleza de princesa, bochecha de algodao, olhos de bolinha de gude. Hoje tem os dentes amarelados, e' magra como uma vareta de pesca e a pele e' aspera de tanto que fuma. Apesar da simplicidade da casa - e dos vicios escondidos em cada gaveta - receberam-me com afeto e humilde simpatia. O cafe' era turco. Alias outros aspectos me remetiam a' Turquia nesta cidade; a propria lingua, a comida, alguns bares e, como coincidencias sao sempre suspeitaveis, descobri que os turcos invadiram  Zagreb por volta de 1500, deixando, obviamente, seus rastros.

Maja e' a pessoa mais estranha que ja me aproximei na vida. Escolher um amigo me parece sempre algo prazeroso e muito intuitivo. Com Maja nao seria diferente, o olhar cativante, sorriso rapido e largo, a vontade de questionar coisas, o platonismo sobre o amor, a idealizacao de uma vida perfeita, a curiosidade pela medicina chinesa e por ai' vai. Poderia descrever muitas coisas belas sobre ela, se nao fosse a descoberta de tamanho egoismo que habita dentro daquela garota. Alem do sentimento de ser vitima de tudo, como se nao tivesse cupa de nada, nunca, jamais. Deve ser algum mimo de infancia - apesar de seus tramas aparecerem mais do que os mimos quando ela os conta - Maja guarda uma ira e uma insatisfacao absurdas dentro de si. Seu ego e' maior que toda a costa croata. Mas ela diz que o seu povo e' que e' ignorante e mesquinho.

Foi uma das viagens mais dificeis que me ocorreu nos ultimos tempos. A descoberta de um ser oco, cheio de defeitos, dificil de lidar, compreender, aceitar, compartilhar. Em certos momentos eu queria lhe dizer o quanto ela estava sendo incoerente nas atitudes, mas ela dizia "don't come and tell what you think right now", e sua voz se exaltava e seus olhos se arregalavam. Parecia um filme de terror. Meu coracao pulou de incompreensao algumas vezes e mesmo que ela nao aceitasse meus questionamentos, eu lhes demonstrava. E aquilo foi crescendo e ficando imenso. Bastaram-me duas noites e dois dias para entender que ao lado dela, eu nao quero estar. Fui fazer-lhe um favor, pensando que ela merecia uma ajuda, ja que sua vida parecia tao cheia de contratempos e porque nao dizer, azar. Percebi, porem, que favor nenhum resolvera' seus ataques de chilique, nem a mais doce das palavras, nem um olhar profundo de compaixao.

Eu desisti de amar uma pessoa, confesso.

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