quem sou eu

28.8.13

Chorando baixinho

Como as crianças faziam naquele tempo, corriam pra debaixo da cama naquele quarto onde se guardavam as coisas que ninguém usava no dia-a-dia, onde a avó de vez em quando costurava uma peça de roupa nova e simples; era um abrigo secreto, seguro, onde o choro poderia vir, quentinho escorrendo nas bochechas, salgando o cantinho da boca, com uma dorzinha apertada no peito, uma dor que era até boa de se sentir. Chorando baixinho, pelas coisas que passam, pelas que passarão.

O filho está doente. Comporta-se mal. Sofre, todos sofrem juntos. Estão perdendo a fé na saúde, estão assustados, perdidos na loucura que acordou consigo numa manhã do futuro que lhes bateu à porta. Era uma realidade e no entanto tornou-se um fato. Algo que poderia se justificar? A quem, ao quê exatamente?As perguntas que os pais se fazem todos os dias, em cada pausa de silêncio, na refeição que fazem quando o filho está ausente.

O irmão tenta encontrar um consolo. Uma leve esperança que chove no seu rosto lavando expectativas, impurezas de pensamentos imperfeitos, julgamentos, lembranças do passado. Sabe reconhecer e aceitar a condição em que se encontra seu irmão. Tenta conversar com os pais, mas sua compaixão não é aquela de oferecer as mãos e um carinho. É aquela de dizer com firmeza que o presente é a realidade da qual não se pode escapar.

Chorando baixinho no quarto escuro. Apenas o colchão e uma velha cama. Apenas o clarão da luz que vem do pátio, pela fresta da veneziana quebrada, percorrendo a sombra que fazem as grades. Ao longe, ele ouve alguns gemidos, o ranger de portas, passos que passam apressados, oras se acalmam. O corredor é comprido, com paredes descascadas. Alguns dos que ali estão perderam a lucidez, a luz de dentro e a de fora, vivem no mundo atemporal. Mas ele não, chora baixinho, e ainda pede pra Deus iluminar seu caminho.

26.8.13

Soundbath

Ele toca com paixão nos olhos, nos dedos, na voz. Ele olha pra dentro de si mesmo enquanto esbanja música pelo corpo, por cada fio de cabelo. O que faz com que a admiração por um  artista seja maior do que pelo outro, é o quão entregue este artista está enquanto faz aquilo. A entrega ao amor, ao presente, ao próprio ato, à cada segundo que acontece diante dos olhos de quem o vê, ouve, e se entrega juntamente.

A entrega de mim mesma naquilo que faço faz o amor transbordar eloquente por cada nota, espelho do que quer dizer a alma, que carinhosamente compôs a melodia, o ritmo, cada pequena parte de um todo. Naquele dia, eu precisava estar concentrada, pensei que o público poderia se conectar com meu olhar, mas eu não podia olhá-los, a execução exigia o foco dentro de mim mesma. A luz era pouca, mas brilhava quando as meninas sorriam. E ao mesmo tempo, o pensamento de deixar-se levar, de estar ali em função da música que preenchia o espaço de dentro e de fora do corpo.

A beleza está também na preparação, na dedicação que ocupa os dias com criatividade, com insistência. Ensaiar, repetir, parar, recomeçar é um processo que caminha com pernas próprias, nem nos damos conta. Mas ao vivo, a conexão consigo mesmo ultrapassa o entendimento racional. É inebriante, lúdico, desafiador. Como equilibrar taças sem deixá-las cair. A noite foi bonita, com gotas de chuva, com banho de som.


16.8.13

Contorno

o brilho
era um sonho
da cor do céu arrastado de nuvens
delineadas pela cor do fogo do sol

o sonho
era um brilho
que refletido no rio de águas limpas
desenhava a silhoueta
de um caminho reluzente

logo a ponte ficou iluminada
as lumiaras se acenderam
e a luz poente foi ficando azul turquesa,
uma e outra estrela
pequenas partículas diante de um olhar
uma dança de quietude
presente como o infinito
sem tempo, sem limites.