quem sou eu

29.10.09

Mirador

Saudades de Mirantao, daquela aldeia distante no meio de altas montanhas, entre a Serra do Mar e a Serra da Mantiqueira. Ha dois dias acordei com a lembranca de Mirantao, do trajeto tortuoso que o onibus empoeirado fazia na estradinha de terra Maua-Mirantao para la' chegarmos, no topo do Vale do Alcantilado. Dentro do onibus, a chacoalhoes iamos parte em pe', parte agarrados as barras de metal do velho transporte que fazia barulho de motor engasgado, e carregava diariamente velhos, criancas, sacolas, colheitas, mochilas de viajantes, encomendas da cidade. Iamos eu, minha prima e minha tia visitar sua amiga e o filho que moravam em Mirantao.

A casa, me lembro bem, era de barro e tijolos a vista, com teto recem-construido, pilares de madeira, nao haviam portas dividindo os ambientes da casa, apenas cortinas,as cortinas de algodao costuradas a mao, sempre com alguma remenda 'a mostra. As janelas eram amplas e recebiam de fora a luz pura de regiao de montanha. O ar e o silencio eram as coisas mais puras e significativas naquele lugar.

Brincavamos nas montanhas ao redor. Alguem sempre contava uma historia de disco voador que se aproximava do local em noite sem lua e ceu estrelado. Brincavamos ate' o entardecer, quando esfriava um pouco e os adultos nos chamavam para tomar sopa. Me lembro bem da sopa de ervilha que se cozinhava. A Silvia, amiga da minha tia, era uma mulher forte, com uma larga mandibula e voz rouca, ela sempre ria e contava piadas, tinha uma preocupacao com a saude mental e o esforco de cada dia, a vontade de conquistar mas ao mesmo tempo a humildade de saber colher as coisas no tempo e na medida certa. A Silvia sempre me dizia que quando eu crescesse, seria sua nora! O pretendente era seu filho Leo, que tinha a mesma idade, ou era um ano mais novo que eu. La' em Mirantao acendiamos a lareira e assavamos pao. Elas cozinhavam em fogao a lenha e ficavam ate' mais tarde conversando enquanto as criancas iam pro quarto dormir 'a luz de velas.

Vinte e dois anos se passaram.Por quantas vezes a lembranca de Mirantao me visitou ao longo desses anos, nao sei calcular. Sempre a lembranca da luz clara, do cheiro de mato, do nosso caminhar com galochas pelas trilhas nao muito distantes da casa, dos jogos de cartas na varanda de cimento queimado, da terra batida da rua, as pedras que seguravam os amontoados de outras terras nos barrancos das vielas. Tantas vezes Mirantao nos meus sonhos, o ceu iluminado com mais de cinco estrelas cadentes que riscavam o ceu quando nos colocavamos sentados por algum momento da noite, do lado de fora da casa.

As lembrancas nos pintam as cores das sensasoes que tinhamos quando ali estavamos, sao como laranja e perola, verde e azul pastel. A memoria que leva e traz as outras vidas que tornaram possivel e real tudo aquilo, naquele cenario. Minha tia segurando minhas maos e de minha prima. A Silvia rindo-se da minha tia quando ela amassava pao. O Leo cutucando os gatos com uma vareta de bambu. Minha prima enrrugando o nariz feito coelho.

Ha dois dias acordei com saudade de Mirantao. Vi todos que um dia ali estiveram.

Hoje acordei e recebi a noticia de que a Silvia e o Leo de outrora Mirantao foram parar em outra esfera da vida, la onde nunca mais veremos seus olhos brilharem, nem tampouco ouviremos suas risadas. La' onde estao tantos outros espiritos em liberdade. La' onde deus vive em paz.

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