Ele se foi. Estava com o coração pequeno, frágil, já nao dava conta de pulsar e jorrar sangue por todo um corpo robusto. Dentro de mim, a lembrança dos cabelos grisalhos, esvoaçantes e soltos, às vezes com gel, penteados pro lado, com a costelheta ao lado, também branca. Usava bigode quando eu era criança, mas há muitos anos abandonara o hábito de cultivá-lo. Piscava um olho pra dizer que estava concordando com algo e fazia que sim com a cabeça lentamente. Dizia "Hum..benzinho meu amor, o teu tio ta velho".
Quando éramos pequenas levava-nos para passeios inusitados, cidades do interior, Suzano, Pirapora, Cambuquira, Praia Grande. Ia a viagem inteira reclamando dos maus motoristas e quando lhe apetecia soltava buzinas enfurecidas e fazia o sinal com o dedo, logo censurado por minha tia que ia no banco da frente. "Pára com isso Ari". Mas ele só se acalmava quando parava em algum restaurante à beira da estrada pra almoçar um pratão de espagueti com frango.
Nunca teve bons modos, era um senhor faladeiro, reclamão, alto, troncudo e barrigudo, às vezes engordava demais e o médico lhe receitava dieta, que nunca seguia por mais de uma semana. Gostava de ver mulheres gordas, redondas, dizia ele, com as coxas grandes e o trazeiro do tamanho do bonde. Era um personagem tão raro, com costumes tao únicos e falas até importunas em muitas situações. Acreditava fosse louco no meu pensamento de criança, mas no fundo eu adorava quando esse tio tão único colocava valsas pra tocar no último volume e junto cantava um lararirara', nos puxando pro baile. Ríamos.
Gostava de ver a casa cheia com cheiro de comida, bebida, falação, irmãos, sobrinhas e sobrinhos- netos. Não tivera filhos; mas sempre nos teve como netas, tão queridas e adoradas que ficava enjoada de aguentar seus elogios, sua mão pesada fazendo carinho em nossas cabeças. Usava aneis de advogado, mesmo sem nunca ter sido tal. Colecionava diplomas nem sempre verdadeiros, cheios de carimbos e símbolos, todos emoldurados e pendurados na parede de sua casa. Desde que eu nasci, mudou tres vezes de casa e em todas elas carregava suas coleções, máquinas de escrever antigas, moedas, porta-retratos, cofres, relógios, pratos pintados à mão, balança com dois pratos (símbolo da justiça em sua mesa comprida), caneteiros, grampeadores e tanta quinquilaria. Dizia que os rifaria um dia, para assim ganhar muito dinheiro. Carregou em todas as casas um órgão antigo, cujas teclas tinham uma fita com o nome das notas. Sempre sonhou tocá-lo, mas o órgão acabou por virar artigo de museu na sala de sua casa.
Escrevera tantas cartas ao governador, ao prefeito, ao embaixador, ao diretor da escola que tinha o nome de sua mãe, ao desembargador, ao carteiro, ao lixeiro, ao leiteiro. Tinha o dom de elaborar cartas formais, dizia ser seu oficio de escrivão que tinha sido na juventude. Sua habilidade de escrever rápido à maquina vinha de sua antiga profissão e sua caligrafia era tão fina e elegante que parecia letra de advogado em documento formal antigo. Nunca fumara, a nao ser numa época em que deslumbrou-se com um caximbo, fez-nos provar tabaco de chocolate. Tantas são as lembrancas que me caem na memória ainda coloridas, como as roupas que usava pra ir ao sapateiro, ao supermercado, ao INSS, ao correio. A verdade é que ele era um homem muito vivaz, eloquente, tão notado por onde passava e ainda deixava seus barulhos pelo caminho, gritos agudos, assovios, sons de peido com a lingua, latidos de cachorro, risadas de bruxo com os dentes a mostra, aliás, com a banguela de fora, tinha uma ponte entre os dentes incisivos que sempre lhe caía e aproveitava para tirar fotos com o sorriso arreganhado.
Fez-nos rir, fez-nos irritar, fez-nos bufar com sua pentelhação, fez-nos escutar histórias de sua adolescencia, aventuras inocentes na sua lambreta. Não sossegava, a não ser nos seus cochilos diários depois do almoço, feito pontualmente ao meio-dia ou na hora de suas novelas favoritas ou ainda quando sentava no sofá de casa fazendo palavras cruzadas. Sabia se entreter. Falava de politica, era conservador. Caçoava dos pobres, dos negros, dos humildes, mas tinha um coração que queria abraçar quem lhe trazia confiança. Nos aniversários dos sobrinhos, presenteava-nos com pasta-de-dente, sabonete e perfume Pinho, seu favorito. Quantas vezes dormíamos em sua casa e nos ríamos dos roncos altos vindos do seu quarto, sempre ao fundo do corredor. Minha tia dizia que às vezes mudava de quarto pra conseguir dormir, mas a verdade é que ela nunca largava esse homem por um minuto que fosse. Um amor conjugal, fraternal, imenso, infindo.
Foi-se. Não o vi partir, não sei qual roupa lhe vestiram, o cabelo como lhe pentearam. Até engraçado foi seu enterro, como me contaram, de tão grande o caixão ficou entalado na cova...bem que dizia, ele queria ser cremado e que suas cinzas fossem lançadas de helicóptero pelo bairro onde morou boa parte de sua vida. Não tenho a imagem de sua partida, tenho todos os sorrisos banguelas na minha coleção de lembranças, os beijos estalados que dava, a sua mão rodando o garfo e a faca enquanto esperava ansioso pela comida que vinha sempre servida pela minha tia.
Diante da distancia, o passeio pelo tempo, a companhia do tio mais presente na minha vida do que qualquer outro. Meu tio-avo, a combinação de maluquice e sanidade, inteligencia e austeridade. Sua partida faz-me pensar nos ciclos da vida, nos percursos que a vida faz, as pessoas que existiram na minha vida e que não existirão mais. Tantas fotografias. Tanta vida vivida. Segue em paz, em seu animado carnaval!
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