Há nove meses atrás, no dia de hoje, eu me preparava para o nascimento. Estávamos de 37 semanas de gestação, mas era preciso fazê-la nascer. Com 34 semanas, recém-chegada de uma linda viagem ao sul da França, dias inteiros de sol e beira mar, comecei a sentir umas coceiras no corpo, achei que eram da pele seca por conta do sol, mas foram ficando intensas. Com 35 semanas fui ao médico e foram feitos exames de sangue quase todos os dias. Com 36 semanas foi diagnosticada a colestase, uma disfunção do fígado que pode acometer grávidas – possivelmente devido a um desequilíbrio hormonal – e que compromete a função do fígado em enviar os sais biliares para a bile, que assim seguem pra corrente sanguínea e sobem à superfície da pele, causando as terríveis coceiras que me tiravam o sono completamente. Era uma sexta-feira, e então a médica me falou, tranquilamente, para marcarmos a indução do parto na próxima sexta, quando completaria 37 semanas, nesse tipo de diagnostico, a indução precisa ocorrer entre 37 a 38 semanas de gravidez para evitar o risco do bebê receber sangue “contaminado”, ter menos oxigênio e sofrer diversas consequências, inclusive perder a vida. Portanto, esperar que o parto se iniciasse naturalmente, que poderia ser de ate 42 semanas de gestação, estava fora de cogitação. Eu, aos prantos, um tanto assustada, um tanto chocada – sonhava com um parto natural em casa, longe de hospital, sem intervenções – pedi pra marcar dali uma semana e três dias, pois queria um pouquinho mais de tempo pra resgatar minha fé, minhas forças, meu imaginário do que de fato viria a ser o meu parto. A internação para iniciar a indução foi então marcada para segunda-feira, 15 de outubro.
Aquela semana transcorreu num misto de preparação para o que não poderia ser mais adiado – faltavam toalhas, fraldinhas, algodão, banheira, utensílios para a chegada da bebê – e busca de informações sobre parto induzido, hormônios a serem utilizados, possíveis consequências. Eu havia lido muitos relatos sobre partos naturais, e conhecia muitos relatos sobre partos com violência obstétrica, ou simplesmente partos com conduta padrão, que são culturalmente aceitos na sociedade brasileira, mas que não respeitam a condição e condução natural do corpo da parturiente. Partos com uso de hormônio sintetico, analgésicos, pelidural, rompimento manual da bolsa, episiotomia, ter de ficar deitada numa cama, dentre outras práticas que tornam o processo de parir mais rápido e viável para um hospital. Eu não queria nada disso, mas iria passar por uma indução, e estaria sujeita às novas regras de conduta que fugiriam do meu “natural”' corporal, e isso me causava angústia. Estava porém, em outro país, onde partos “padrões” significam que as mulheres têm autonomia pra decidir e escolher o que querem.
Foram dias fugazes, de busca pela fé em continuar a acreditar que daria tudo certo, de me perguntar por que aquilo estava acontecendo comigo e minha bebê. Nas duas semanas antes do diagnóstico se confirmar, em meio a coceiras, frustração e busca por informação, eu havia caído num abismo profundo, de tristeza, decepção, negação, medo e, principamente, não aceitação do que estava acontecendo comigo naquele final de gravidez. Até então me sentia bem, confiante, forte, empoderada, preparada para um parto domiciliar, cheia de energia. Tudo desabou e eu chorava deseperadamente em todo lugar, principalmente no chuveiro. Soluçava, gemia alto. Depois me acalmava e continuava a me banhar em lágrimas. Conversava muito com minha família distante, minhas irmas, minha mae, meu marido Alua em casa, estavam todos preocupados mas queriam me confortar. Já não se podia mais adiar os fatos e era hora de me centrar, conversar com minha bebê e dizer para trabalharmos juntas nessa saída, pra que ela não se “assustasse” nesse trajeto que viria de surpresa – eu ficava imaginando a bebê lá dentro, no quentinho, se desenvolvendo, e de repente alguém gritaria, “sai daí, vem, vem”! Busquei conversar com algumas diversas maes recem-paridas aqui em Londres, com doulas e parteiras, com amigas que se tornaram maes, busquei acreditar que daria certo, que eu não acabaria tendo uma cesária de emergência, que se fosse necessário eu aceitaria no momento, mas que o caminho continuava a ser o do parto natural, que era tão importante pra mim vivê-lo, e pra minha bebê também, e que, afinal, o mais importante era não deixá-la correr risco de vida.
Fiz uma sessão de acupuntura que me trouxe leveza, disse-me a acupunturista “alimente-se bem pra enfrentar o trabalho de parto”. Uma consulta com a médica homeopata ressaltou a importância de aquietar a mente e descansar, confiar no corpo e tentar dormir um pouco. Uma sessão com uma doula que me instruiu a ser firme e ter foco no que eu queria para o meu parto, conseguir dizer não às intervenções que eu não quisesse, poder analisar as decisões que os médicos quisessem tomar, para eu estar centrada e poder escolher sem medo da escolha, que um parto induzido não deveria diferir de um parto natural quando se tratam de escolhas. E assim a semana se passou, fui ganhando força e confiança. O fim de semana se passou, com muita yoga, fotos, caminhadas.
Na segunda-feira preparei a malinha de hospital, livro (que inocência achar que conseguiria ler!), cds, sabonete, castanhas e frutas secas. Havia uma estimativa medica de que eu passaria pelo menos 24h com o hormônio intravaginal de prostaglandina para dilatar o cervix e então entrar em trabalho de parto com as contrações; que eu poderia ficar até três dias à espera de dar a luz, ia depender de como meu corpo reagiria a esse hormônio inicial, e se precisasse de outros. Os medicos e as parteiras me diziam que tudo estaria sob controle, independente do tempo que levasse. A equipe de parteiras da ala da maternidade no hospital londrino era muito calma. A pastilha de hormônio foi colocada às 14h35. Fui dar uma volta com o Aluá. Às 16h estava com a sensação de cólica, parecida com a pré-menstrual, bem forte. Às 18h voltei pro leito, havia quatro camas nesse quarto, separadas por cortinas, cada grávida ou recém-parida com sua história, e no burburinho dos acontecimentos tirei uma soneca. Às 20h acordei com dores fortíssimas e muita vontade de fazer xixi. Comi uma fruta e um sanduíche e das 20h às 23h teve banho, caminhadas ao banheiro, mensagens com familiares e amigos – morava em Londres e minha família estava no Brasil, vibrando pelo acontecimento. Para minha surpresa, o quarto ficou silencioso e escuro, todas as outras pacientes tiveram alta ou foram transferidas para outros leitos. Foi um presente bem recebido ter esse quarto para mim! A parteira do turno da noite recomendou que eu tentasse descansar, pois o dia seguinte seria longo – a equipe acreditava que eu entraria em trabalho de parto na tarde seguinte. Meu marido fez uma massagem nos meus pés. Quase adormeci, mas o que se seguiu nas próximas horas, e que eu não sabia, era o primeiro estágio do trabalho de parto.
Eu respirava lenta e profundamente, via e sentia uma onda bem ascendente no meu ventre, contava 8 a 9 respirações para que a onda se completasse. Tinha um espaço curto de outras respirações em que a onda se dissipava e depois reaparecia. Lentamente ia se formando, fazendo a curva da onda, na quarta e quinta respiração atingia o seu ápice de dor e intesidade, e contando 9 e 10 já se dissipava novamente. Fiquei deitada de lado, muitas vezes me levantei para ir ao banheiro, sentia a barriga dura como uma pedra, não sentia a bebê se mexer, parecia que tinha um vácuo que puxava meu canal vaginal, doía como se tivesse com o corpo febril, dava vontade de evacuar e fazer xixi, e assim segui pela madrugada. Fechava os olhos, deitada de lado, Aluá deitado ao pé da cama dormia e respirava profundo, e eu via a curva, meu ventre quente, imaginava meus ossos dos quadris se expandindo, pensava se era efeito do hormônio, se depois daquilo viriam contrações. Conversei com a parteira sobre minhas sensações, ela sugeriu que eu tomasse um paracetamol, uma codeína e descansasse. Aceitei, comi uma maçã, bebi um copo de água e me deitei novamente. A onda continuava a ir e vir, eu fazia caretas, tentava relaxar os músculos da face mas de repente senti uma fisgada fortíssima, um beliscão no centro do ventre. E foi então que as contrações do segundo estágio do trabalho de parto se iniciaram. Aluá foi chamar a parteira. Uma respiração profunda em som de ssssse apoderou de mim, em todas as expirações. Meu corpo parecia se contorcer naturalmente, eu fechava os olhos. A parteira pediu que eu me deitasse pra retirar o tampão de hormônio que tinha sido inserido na tarde anterior. Tive uma contração enquanto ela media minha dilatação. Vi estrelas no céu e muita dor na terra! Ela disse que eu estava com 3cm dilatados e que a bebê havia descido muito e que eu iria entao para a sala de parto, o labour ward. Levantei da cama, vomitei a maçã e o remédio. Fui caminhando até a sala de parto, me agachei na beira da cama, respirava profundamente, fechava os olhos, mal podia abri-los entre uma contração e outra.
Eram 6h15, vi no relógio de parede na sala de parto. A parteira do turno da manhã se apresentou e sugeriu um banho pra ajudar na dor enquanto ela preparava a sala, o canto da emergência, caso fosse necessário reanimar a bebê (nem quis olhar, pois pensei, não vamos precisar). Fui pro banho sem muito querer, e dos quatro apoios no chão sentia as contrações incontroláveis, vulcão em erupção, me deixavam zonza, me faziam tensionar os braços, os ombros, as mãos. Aluá segurava o chuveirinho e apontava pra minha lombar, cada gota parecia ferro que caía sobre mim, doía mas a água morna dava uma sensação boa. E a respiração continuava alta e forte, sempre em som de ssss na expiração. Ao sair do banho, procurei ficar de cócoras em cima da cama, apertava o travesseiro, abaixava a cabeça, mal conseguia levantá-la. Quando dava vontade de gritar Aluá me olhava e dizia, "respira"…
Em algum momento, entre uma contração e outra – eram muito constantes, não media, não contava nada, apenas sentia –, visualizei a minha mãe (3 filhas), a mãe do Aluá (4 filhos) e a Maria (4 filhos) uma amiga que me acompanhou durante a gravidez com conversas sobre partos domiciliares. Imaginei a força de todas elas enfrentando seus partos. A coragem por ter passado por aquilo várias vezes. Parecia que não teria fim, que eu sentiria contrações pro resto da vida! Um jato de água quente sai de mim e me surpreende e dá um alívio de alguns segundos. Era a bolsa que tinha estourado. Eu sorrio e olho pro Aluá. Comemoro o desenrolar desse parto. Num piscar, médicos e residentes – eram mais de 5 - entram no quarto e se apresentam para dizer que precisavam usar um procedimento invasivo pra medir os batimentos cardíacos da bebê pois o que estavam usando, uma especie de cinturão, não estava funcionando. Eu não tenho forças pra responder, continuo a respirar, gemer, sentir. Aluá conversa com os médicos para questionar a intervencão, sinto um clima meio tenso entre eles, mas não tenho condições de me preocupar, as contrações eram muito intensas. Os médicos saem do quarto (quem acompanha/realiza partos sem risco são as parteiras), Aluá ajuda a segurar o cinturão para ver se funciona melhor, as parteiras – nesse momento haviam três – me encorajam e elogiam, dizendo que estava indo muito bem. Me levanto, fico na beirada da cama, enquanto tentam medir os batimentos, seguro forte nos braços do Aluá. Uma nova sensação surge junto às contrações, a vontade espontânea de fazer força, e a parteira confirma if you feel like pushing, you can push “se estiver com vontade de fazer força, faz, empurra", era o ultimo estágio do trabalho de parto que tinha chegado, o da expulsão. Uma delas decide ajeitar a cabeceira da cama, colocando-a na vertical, e diz let's get ready, it's coming “vamos nos aprontar, a hora está chegando”.
Olhei pro relógio na parede, 8h45. Já? Fariam quase 3 horas que eu estava ali? Num misto de alegria e ainda muita dor, me posiciono com os joelhos no colchão, mãos e braços apoiados na cabeceira, recebo muito incentivo das parteiras “isso, empurra pra baixo, da pra ver a cabeça, você está indo muito bem”. E numa força fenomenal, sentindo uma queimação absurda, bola de fogo coroando meu canal vaginal, com um grito que me deixou rouca, a cabeca da bebê passa pelo canal e todas comemoram “na próxima contração você empurra bem forte para baixo, e o corpinho vai sair”. Já sorrio, como se o trabalho estivesse encerrado, dali pra frente era alívio, alegria, comemoração, bebezinho nos meus braços, sonho realizado, parto sem intervenções, meu corpo no comando, minha mente às vezes divagando e sempre ali na atenção, sem ter tido medo da dor, sentindo-a, tentando entendê-la, sem conseguir nem um pouco, sem drogas pra amenizar, com a liberdade dos meus movimentos, dos meus sons, do meu silêncio. E mais duas contrações, empurro, sinto como um sabonete que escorrega, me viro pra trás, está lá nos lençóis, Luara, minha bebe, bochechuda, enrrugadinha, amarelo-avermelhada, olhos semiabertos. Ela dá um pequeno gemido, me viro, sento na cama, pego-a em meus braços, beijo sua testa, agradeço pelo esforço, pelo nosso trabalho juntas, por aquele encontro tão almejado daquela maneira, Aluá emocionado fica bem perto, sorrimos. Ela busca o peito, suga, mama o colostro, todos rimos. Ele corta o cordão umbilical depois que parou de pulsar, Luara vai pros braços dele e e' hora de lidar com a saída da placenta. Tudo ocorre perfeitamente, não preciso levar pontos e as parteiras elogiam novamente, well done, you did really well!
O que se segue nas próximas horas é pura euforia. Tomo banho, visto uma camisola, mando mensagens do celular, almoço com muito apetite, vou ao corredor tomar chá, as parteiras me cumprimentam, me chamam de yogamum, mamãe yoga, converso com os médicos que vêm examinar Luara que passa muito bem, passamos a tarde nessa mesma sala de parto, nós três juntos, sinto a adrenalina pelo meu corpo, bem-estar, vontade de caminhar, sorrir, agradecer. A ocitocina, nosso hormônio natural também chamada por muitos de hormônio do amor, inundou meu corpo para o trabalho de parto, e permaneceu em grandes quantidades para favorecer a amamentação, me sentia muito bem e feliz. Voltamos pra casa no dia seguinte e o que se desenrola no pós-parto, chama-se puerpério, a recuperação, o nascimento de uma mãe que achava que saberia nascer tranquilamente, uma bebê que provavelmente não sabia que tinha nascido, e tanta emoção que vale um outro capítulo dos últimos nove meses pós gestação, um dos períodos mais intensos de aprendizado e fragilidade ao longo desses meus 38 anos de vida.
15 de Julho de 2019.