quem sou eu

19.4.10

Fragmentos de dança

Sai de dentro dos corpos a dança, o mote, a razão do movimento, a leveza que se faz intensa, pés que giram em ponta, articulações estão soltas.
São muitas as quedas, o barulho do corpo ao chão, a força da gravidade que os puxa, o incômodo de vê-los cair, a dor de quem não a sente, a dor supostamente sentida para quem cai, os tombos que acontecem na vida. Um tombo e depois mais outro.

O espetáculo de dança Corpos Frágeis reverencia a força - em oposição, a fragilidade feminina nos braços de quem as protege - às vezes. Uma mulher segura um candelabro enquanto a outra se despi. Um homem começa a fazer um colar enfiando as miçangas pelo fio e depois outros revezam o feitio. O artesanato que passa de mãos em mãos, tudo que se inicia,completa-se em continuidade. O colar se rebenta, as miçangas se espalham no palco, fragmentos de uma obra, os corpos em meio à destruição. A peça é a rotação dos sofrimentos humanos. A delicadeza em cada ato, a violência do não-estático.

Como se um corpo quisesse partir, mas tendo que ficar resolvesse não ir. Ou não tendo que ir determinasse voltar; querendo ficar decidisse partir; com medo de seguir, segurasse as pernas pra não ir. Vindo e não indo. Indo e logo voltando. A não auto-permissão. O estilhaço. Quem se permite ser feliz, o é. Mas de quantas falhas são feitas os homens que arrancam as próprias pernas para não mais prosseguirem? Quantas são as mulheres que amarram seus braços para não mais abrí-los ao céu?

É a dança da não-liberdade, mesmo que seja involuntário dos corpos ir buscar por ela. Na beleza de cada e todo movimento, expressão. De tudo que não se fala e muito se vê. De como pode ser bonito fragmentar o que causa dor, até que tudo recomece.

16.4.10

Para Dora

Dora,
quem te adora
põe-te na mão e ora
e na beleza da face
de te ver, se cora


quem te namora,
Dora
é teu pai
que faz hora
nunca vai-se
embora
sem antes amar-te
mais que outrora


a feminilidade
de Dora
se incorpora
aos doces olhos de agora
azul de céu de amora


ainda pouco chora,
acorda Dora,
sonha e vê
o mundo a sorrir-te
como a lua lá fora.

14.4.10

Imagem

corre menino
vai pra ponta
na beira do mar

sopra o ar vazio
de volta pro navio
na saída do cais

segura outra criança
na palma a herança
de outro que se vai

salta o menino
pro fundo
no escuro da água de sal

toca a areia
do mundo
onde o corpo se desfaz

abraça o laço
de memória no céu
de anis de alma que vai em paz

o passado afunda
e bóia na presença
da saudade que jaz.

9.4.10

Cabeça de Pipa

"Por asas nas costas e voar por aí
do céu dá pra se ver
bem melhor
por aí

De sua sede, de sua lágrima
que hidrata a dor da sede

Cantei toada no monte do morro
olhei por fora do fogo do sol
a gente nem tava ligando pra pipa
mas ela levou o mundo todo de anzol"

Lenis Rino
me deu de presente seu Cd de suas composições, "Cabeça de pipa". Ele é grande, troncudo, forte, tem um coração imenso e escreve bonito...pra quem quiser dá pra baixar pela Traquitana discos.

6.4.10

Regresso

quando um coração quer permanecer

e tendo que partir

escolhe deixar o amor,

nasce em cada amanhecer

ilumina o pranto em cada entardecer

dorme com o sol

se veste de sonhos

se imagina real

transparece verdadeiro

colhe flores,

cuida pra não murchar

e o tempo despetala

com o vento.

quando resta ao coração partir

cobre-se com o manto

da oração

humilde desejo de ter-se abençoado

e cantando prossegue

como se a vida fosse uma canção.

1.4.10

no céu

Ela não está mais aprisionada em sua dor, ela se libertou.
Foi com o sopro do vento forte do jardim de camélias. Foi quando saiu daquele hospital sem cor e com cheiros fortes. Ela vai descansar muito, ela nos deixou compaixão, gratidão, amor, a dor que ainda vai cicatrizar, o gosto amargo da doença que corroeu seu corpo por dentro. Mas sua alma repousa no céu.

Essas coisas são sempre bonitas de se dizer, e elas tem de ser ditas pra que tragam o silêncio eterno e o silêncio dentro de nós mesmos, pra que a serenidade nos conforte. Eu passei a admirar a morte sem sofrimento desde que ela começou a sofrer, há um ano atrás. Mas houve luta; foi bonito. A batalha pra se viver, pra vencer, pra curar, pra conseguir, pra prolongar a vida. Depois da batalha um grande esmagador de esperanças apossou-se de nós todos e dela, comeu a carne, os órgãos, dia após dia, noite após noite, um exagero com um fim.

Minha avó morre em véspera de Páscoa, junto com o Jesus que ela tanto amava. Não deixou de ser uma crucificação tudo isso, tudo que Ela passou e que nós compartilhamos, podíamos apenas confortá-la com nosso calor, nossa compaixão.

Muito querida, minha avó. Cuido das flores de seus vasinhos, pequenino jardim de cultivar amor. Cuido da felicidade que pra ela era tão difícil de abraçar.
O amor não tem fim.