quem sou eu

29.1.24

Regresso XV

Quinze! Ja se somam 15! Me lembro da primeira chegada, no Picadilly line, as casas cinzentas como o céu, o som das portas do metro, as pessoas quietas. A partida de Heathrow é lenta, a mudança em Green park, caminhada. Fazia bons anos que nao regressávamos de metro, acho que pra mais de 6. E me lembro bem de como pensava: que lugar é esse que nao me traz euforia? Que lugar é esse quieto e reto? E no metro de hoje, eu sei bem que lugar é  esse, e o sentimento é um tanto parecido, brando.


Chegar em casa é sentir o cheiro do velho conhecido. A casa fria, porém limpa, o sono caindo nas pálpebras. Acordar e pedir sushi. Acordar e guardar as roupas dela. Limpar as gavetas, o cabideiro, pegar as bonecas, ouvir suas conversas, curtir suas risadas...ela fica feliz quando chega, Luara. Dessa vez não perguntou de ninguém. Eu com o coração murchinho sempre fico ali, escorre uma lagrima e outra e me olho na descrença de ainda continuar a repetir um hábito que não alimenta minha alma. Que se faz necessario por algum processo cármico, mas que me distancia de minha conexão mais profunda com o que eu acredito que seja essêncial pra minha vida.


O regresso é conhecido, feito sem festejo. E me pergunto, mas se na vida não for o festejar, o que será? Encontrar os amigos assim que der, casamento desatado. Na esperança de ter todos os nós também desatados.


Jan 2024

Rgresso XIV

Já se vinha fazendo, desde antes da partida o tema do regresso que se reinicia.

Desapego, desassossego, destemo, desobedeço, desmereço, desarremendo. Retomo, retorno, retrocedo, recaio, refaço, recomeço, reentristeço, reencontro, reorganizo, recebo, remendo, revivo, reconheço. 


É sempre tudo des-re-sentimento. Quase um luto, despedir-se, partir, esvaziar-se, desconectar-se dos de lá, pai, mãe, irmã, avós dela, as brincadeiras que ela inventa por lá, com quem lá está. Sempre resta o sonho, o regresso para lá enquanto, por hora, repito: regresso, aqui, contando a vez, cada ano, como algo (im)permanente, (im)perfeito, (in)cidente, (i)rreparável, (i)real.


E ao deitar, a vida se faz como um sonho, mar de núvens. Da janela do avião: “é o mar mamae?” - Não, filha, são as nuvens, é um mar de nuvens. Ela observa quieta. Dali a pouco, “ah estou vendo mamãe, o lago de mar” - O mar de nuvens né filha! “Sim”


Regressar com ela, é um pouco mais de paz, é presente, dia após dia buscar alegria, encontrá-la em brinquedos, fotos, parques, amizades, é tudo em cada detalhe do dia. 


Abril 2023

Regresso XIII

O cheiro da casa daqui contém todos os regressos num pisar para dentro de casa depois de abrir a porta e entrar. 

A viagem é sempre longa, aeroporto, avião, aeroporto, imigração. 

Pela primeira vez nesses treze anos de regresso, recebi um “welcome back” da oficial de imigração.

Era mulher, recebeu o passaporte da minha filha, o meu, nada perguntou e assim me disse. 


A passagem do tempo contém em si familiaridades que fazem com que eu me sinta confortável em determinada situações e chegar contém todas as partidas, idas e vindas, novas promessas, o mesmo sonho de talvez nunca mais regressar, não pra ficar. 


Mas a vida segue. 


Abril 2022

Regresso XII

Alegrias de um voo noturno, desenhos, filme, sono, coberta, ar condicionado.

Conexão em outra cidade, já chegamos mamãe? Nao ainda pegaremos outro avião. 

Na espera, tira a meia e o tênis, come banana e ri.


A chegada foi diferente, não pudemos ir pra casa, nos instalamos no hotel, 10 dias de quarentena, num quarto, nós três juntos, inventando brincadeiras, pulando na cama, mergulhando na banheira espumante, dançando nos espaços estreitos do quarto, fazendo careta pros espelhos, inventando bonecos de papelão, estendendo a playlist do Spotify, “Toma um banho de lua”, entrou.


A chegada em casa sempre acalma e inquieta. A mente se agita, busca memórias, faz perguntas, se cansa mas o corpo quer descansar. Ela brincou com as bonecas Matrioska, tira todas, recoloca, tira, recoloca. Reviu Toby, Bidu, ursinho Puff e sua bebe. Brincou, brincou até querer colo, pedir vovó, mamá, se cansar e dormir.


O clima traz a sensação de que não há novidade, tudo sempre meio brando. Vitória não está mais por aqui, isso é novo e bem vazio. Luara pergunta dela ao olhar da janela, ao passear na rua, ao vestir roupas que ganhou dela. Como será viver sem minha melhor amiga e companheira?


Seguimos no curso das emoções, sou mãe, quero o melhor pra minha filha, seria o melhor de mim o suficiente pra ela? 


14.5.20

Regresso XI

Abrimos a porta, entramos.
Coloco-a no chão, ela caminha até a sala,
passeia com os olhos pelas paredes
aponta para sua foto no alto da prateleira
sorri e geme: aaannh
Vamos pro corredor,
aponta para a escada
Ela esqueceu como subir os degraus
fica com a perna bamba
quer segurar minhas mãos
eu me espanto, já que ela começara a subir escadas com 9 meses
e hoje tem 16
No seu quarto sorri, faz os gestos dos animais cujos quadrinhos
estão pendurados ao redor do berço
confere a caixa de brinquedos
fica feliz
e dali uma hora cai no choro
Quer ver gente
avós tias, primas, gato, quintal
e dali a 3 horas já está' subindo as escadas novamente
Nosso regresso, que não é mais somente meu,
ganhou novos sons,
novas cores, novos sentidos
Ela me acalma, me inspira,
me emociona, me alegra
Ela me faz acreditar que o regresso é momentâneo
que vale viver aqui e lá,
que vale estar no mundo
amando plenamente
e que nossa casa tem nosso cheiro
nosso som, nossa poesia.
Regresso com Luara
adoça minha melancolia.

Abril 2020

13.12.19

Escute o ritmo de tua alma.

Acordo. Ainda nao clareou completamente. Neste lado do hemisferio norte, as manhas nao sao muito claras logo cedo. Se der sorte, tem luz do sol, mas os dias seguem enbranquecidos, acinzentados, cheios de nuvem, ar frio e umido. Bom pra ficar na cama dormindo um pouco mais. Bom pra olhar pela janela de dentro de casa e contemplar o ceu nublado.

Escute o ritmo de tua alma.

Levanto e a bebe que estava mamando chora, chama o aconchego. Levanta os bracinhos pra mostrar o que quer. Escorrem lagrimas. Mamae da'-lhe um beijo na testa, pega a roupa, o oculos e vai se vestir em outro comodo. Bebe chora por mais poucos instantes e papai esta' la pra acolhe-la e consola-la. Mamae se veste, escova os dentes, pega a bolsa, o ukulele, as lanterninhas da bike e sai. Pensa no frio cortante, na cama quente, na filha amada, no dia pela frente.

Escute o ritmo de tua alma.

Entra no trem, esta' um pouco cheio, a porta ja' vai fechar, e gosta de ficar proximo a porta, pra ver  o tempo la' fora, pra se distrair com a paisagem, pra ter a ilusao de que sera' a primeira a sair do trem, quando precisar. Segundos antes da porta se fechar mais tres pessoas entram, fica apertado, uma mulher entra ofegante, a porta se fecha, meu coracao dispara, meu sangue cora minha face, quero sair, quero gritar, tiro o casaco de frio, o cachecol, respiro "esta' acontecendo de novo, respira", vai passar, esta' passando. Alcame-se. Nao escutou o ritmo de tua alma?

Saio da estacao de trem e o onibus passou..7 minutos pro proximo, decido ir pegar um cafe. Nem tao bom, nem tao especial, mas quente, acolhedor. Chegando na escola, vestimentas natalinas, nariz de rena, parquinho de diversoes montado no patio, caixa de som pro lado de fora. Entendo que sera' um dia atipico, de festa, de quebra da rotina. Criancas falantes, contentes. E o dia trascorre entre gritos felizes, corridas energeticas, criancas escapando da aula de ukulele, feliz navidad tocando alto no recreio.

Escute o ritmo de tua alma.

No trem de volta pra casa assisto um filme sobre os bebes, 1000 dias de vida, da gestacao aos tres anos. Ja estamos na metade desses mil, eu acompanhando a vida dela, tanta coisa aconteceu e minha bebe cresce numa velocidade incrivel, uma beleza sem tamanho, uma saudade do que ja foi, um aperto no peito da rapidez com que tudo passa, mamae indo trabalhar, medo de perder o crescimento, cada passo novo, cada gesto novo. Como dar voz ao ritmo de sua alma? Ela consegue escuta-la mas nao consegue parar para ouvi-la.

Mais um trem que chega ao seu destino, a mensagem do marido: "Passa no supermercado". A saudade da filha em casa, o medo de estar perdendo horas dos mil dias de vida mais importantes da evolucao humana, a chuva caindo no capuz do casaco, a bike toda molhada. Choro. Quero casa, dar colo e receber comida. Quero estar la. Nao quero estar aqui. Quero parar. Ouvir. Ver. Apreciar.

No meio da rua, escuto o ritmo de minh'alma. Ela quer estar junto ao coracao de minha filha. Nao sabe no entanto, como fazer o corpo da mae reagir e parar um pouco. Deixar-se estar.


30.7.19

O parto

          Há nove meses atrás, no dia de hoje, eu me preparava para o nascimento. Estávamos de 37 semanas de gestação, mas era preciso fazê-la nascer. Com 34 semanas, recém-chegada de uma linda viagem ao sul da França, dias inteiros de sol e beira mar, comecei a sentir umas coceiras no corpo, achei que eram da pele seca por conta do sol, mas foram ficando intensas. Com 35 semanas fui ao médico e foram feitos exames de sangue quase todos os dias. Com 36 semanas foi diagnosticada a colestase, uma disfunção do fígado que pode acometer grávidas – possivelmente devido a um desequilíbrio hormonal – e que compromete a função do fígado em enviar os sais biliares para a bile, que assim seguem pra corrente sanguínea e sobem à superfície da pele, causando as terríveis coceiras que me tiravam o sono completamente. Era uma sexta-feira, e então a médica me falou, tranquilamente, para marcarmos a indução do parto na próxima sexta, quando completaria 37 semanas, nesse tipo de diagnostico, a indução precisa ocorrer entre 37 a 38 semanas de gravidez para evitar o risco dbebê receber sangue “contaminado”, ter menos oxigênio e sofrer diversas consequências, inclusive perder a vida. Portanto, esperar que o parto se iniciasse naturalmente, que poderia ser de ate 42 semanas de gestação, estava fora de cogitação. Eu, aos prantos, um tanto assustada, um tanto chocada – sonhava com um parto natural em casa, longe de hospital, sem intervenções – pedi pra marcar dali uma semana e três dias, pois queria um pouquinho mais de tempo pra resgatar minha fé, minhas forças, meu imaginário do que de fato viria a ser o meu parto. A internação para iniciar a indução foi então marcada para segunda-feira, 15 de outubro.
            Aquela semana transcorreu num misto de preparação para o que não poderia ser mais adiado – faltavam toalhas, fraldinhas, algodão, banheira, utensílios para a chegada da bebê – e busca de informações sobre parto induzido, hormônios a serem utilizados, possíveis consequências. Eu havia lido muitos relatos sobre partos naturais, e conhecia muitos relatos sobre partos com violência obstétrica, ou simplesmente partos com conduta padrão, que são culturalmente aceitos na sociedade brasileira, mas que não respeitam a condição e condução natural do corpo da parturiente. Partos com uso de hormônio sintetico, analgésicos, pelidural, rompimento manual da bolsa, episiotomia, ter de ficar deitada numa cama, dentre outras práticas que tornam o processo de parir mais rápido e viável para um hospital. Eu não queria nada disso, mas iria passar por uma indução, e estaria sujeita às novas regras de conduta que fugiriam do meu “natural”' corporal, e isso me causava angústia. Estava porém, em outro país, onde partos “padrões” significam que as mulheres têm autonomia pra decidir e escolher o que querem.
        Foram dias fugazes, de busca pela fé em continuar a acreditar que daria tudo certo, de me perguntar por que aquilo estava acontecendo comigo e minha bebê. Nas duas semanas antes do diagnóstico se confirmar, em meio a coceiras, frustração e busca por informação, eu havia caído num abismo profundo, de tristeza, decepção, negação, medo e, principamente, não aceitação do que estava acontecendo comigo naquele final de gravidez. Até então me sentia bem, confiante, forte, empoderada, preparada para um parto domiciliar, cheia de energia. Tudo desabou e eu chorava deseperadamente em todo lugar, principalmente no chuveiro. Soluçava, gemia alto. Depois me acalmava e continuava a me banhar em lágrimas. Conversava muito com minha família distante, minhas irmas, minha mae, meu marido Alua em casa, estavam todos preocupados mas queriam me confortar. Já não se podia mais adiar os fatos e era hora de me centrar, conversar com minha bebê e dizer para trabalharmos juntas nessa saída, pra que ela não se “assustasse” nesse trajeto que viria de surpresa – eu ficava imaginando a bebê lá dentro, no quentinho, se desenvolvendo, e de repente alguém gritaria, “sai daí, vem, vem”! Busquei conversar com algumas diversas maes recem-paridas aqui em Londres, com doulas e parteiras, com amigas que se tornaram maes, busquei acreditar que daria certo, que eu não acabaria tendo uma cesária de emergência, que se fosse necessário eu aceitaria no momento, mas que o caminho continuava a ser o do parto natural, que era tão importante pra mim vivê-lo, e pra minha bebê também, e que, afinal, o mais importante era não deixá-la correr risco de vida.
          Fiz uma sessão de acupuntura que me trouxe leveza, disse-me a acupunturista “alimente-se bem pra enfrentar o trabalho de parto”. Uma consulta com a médica homeopata ressaltou a importância de aquietar a mente e descansar, confiar no corpo e tentar dormir um pouco. Uma sessão com uma doula que me instruiu a ser firme e ter foco no que eu queria para o meu parto, conseguir dizer não às intervenções que eu não quisesse, poder analisar as decisões que os médicos quisessem tomar, para eu estar centrada e poder escolher sem medo da escolha, que um parto induzido não deveria diferir de um parto natural quando se tratam de escolhas. E assim a semana se passou, fui ganhando força e confiança. O fim de semana se passou, com muita yoga, fotos, caminhadas.
         Na segunda-feira preparei a malinha de hospital, livro (que inocência achar que conseguiria ler!), cds, sabonete, castanhas e frutas secas. Havia uma estimativa medica de que eu passaria pelo menos 24h com hormônio intravaginal de prostaglandina para dilatar o cervix e então entrar em trabalho de parto com as contrações; que eu poderia ficar até três dias à espera de dar a luz, ia depender de como meu corpo reagiria a esse hormônio inicial, e se precisasse de outros. Os medicos e as parteiras me diziam que tudo estaria sob controle, independente do tempo que levasse. A equipe de parteiras da ala da maternidade no hospital londrino era muito calma. A pastilha de hormônio foi colocada às 14h35. Fui dar uma volta com o Aluá. Às 16h estava com a sensação de cólica, parecida com a pré-menstrual, bem forte. Às 18h voltei pro leito, havia quatro camas nesse quarto, separadas por cortinas, cada grávida ou recém-parida com sua história, e no burburinho dos acontecimentos tirei uma soneca. Às 20h acordei com dores fortíssimas e muita vontade de fazer xixi. Comi uma fruta e um sanduíche e das 20h às 23h teve banho, caminhadas ao banheiro, mensagens com familiares e amigos – morava em Londres e minha família estava no Brasil, vibrando pelo acontecimento. Para minha surpresa, o quarto ficou silencioso e escuro, todas as outras pacientes tiveram alta ou foram transferidas para outros leitosFoi um presente bem recebido ter esse quarto para mim! parteira do turno da noite recomendou que eu tentasse descansar, pois o dia seguinte seria longo – a equipe acreditava que eu entraria em trabalho de parto na tarde seguinte. Meu marido fez uma massagem nos meus pés. Quase adormeci, mas o que se seguiu nas próximas horas, e que eu não sabia, era o primeiro estágio do trabalho de parto.
          Eu respirava lenta e profundamente, via e sentia uma onda bem ascendente no meu ventre, contava 8 a 9 respirações para que a onda se completasse. Tinha um espaço curto de outras respirações em que a onda se dissipava e depois reaparecia. Lentamente ia se formando, fazendo a curva da onda, na quarta e quinta respiração atingia o seu ápice de dor e intesidade, e contando 9 e 10 já se dissipava novamente. Fiquei deitada de lado, muitas vezes me levantei para ir ao banheiro, sentia a barriga dura como uma pedra, não sentia a bebê se mexer, parecia que tinha um vácuo que puxava meu canal vaginal, doía como se tivesse com o corpo febril, dava vontade de evacuar e fazer xixi, e assim segui pela madrugada. Fechava os olhos, deitada de lado, Aluá deitado ao pé da cama dormia e respirava profundo, e eu via a curva, meu ventre quente, imaginava meus ossos dos quadris se expandindo, pensava se era efeito do hormônio, se depois daquilo viriam contrações. Conversei com a parteira sobre minhas sensações, ela sugeriu que eu tomasse um paracetamol, uma codeína e descansasse. Aceitei, comi uma maçã, bebi um copo de água e me deitei novamente. A onda continuava a ir e vir, eu fazia caretas, tentava relaxar os músculos da face mas de repente senti uma fisgada fortíssima, um beliscão no centro do ventre. E foi então que as contrações do segundo estágio do trabalho de parto se iniciaram. Aluá foi chamar a parteira. Uma respiração profunda em som de ssssse apoderou de mim, em todas as expirações. Meu corpo parecia se contorcer naturalmente, eu fechava os olhos. A parteira pediu que eu me deitasse pra retirar o tampão de hormônio que tinha sido inserido na tarde anterior. Tive uma contração enquanto ela media minha dilatação. Vi estrelas no céu e muita dor na terra! Ela disse que eu estava com 3cm dilatados e que a bebê havia descido muito e que eu iria entao para a sala de parto, o labour ward. Levantei da cama, vomitei a maçã e o remédio. Fui caminhando até a sala de parto, me agachei na beira da cama, respirava profundamente, fechava os olhos, mal podia abri-los entre uma contração e outra. 
          Eram 6h15, vi no relógio de parede na sala de parto. A parteira do turno da manhã se apresentou e sugeriu um banho pra ajudar na dor enquanto ela preparava a sala, o canto da emergência, caso fosse necessário reanimar a bebê (nem quis olhar, pois pensei, não vamos precisar). Fui pro banho sem muito querer, e dos quatro apoios no chão sentia as contrações incontroláveis, vulcão em erupção, me deixavam zonza, me faziam tensionar os braços, os ombros, as mãos. Aluá segurava o chuveirinho e apontava pra minha lombar, cada gota parecia ferro que caía sobre mim, doía mas a água morna dava uma sensação boa. E a respiração continuava alta e forte, sempre em som de ssss na expiração. Ao sair do banho, procurei ficar de cócoras em cima da cama, apertava o travesseiro, abaixava a cabeça, mal conseguia levantá-la. Quando dava vontade de gritar Aluá me olhava e dizia, "respira"…
          Em algum momento, entre uma contração e outra – eram muito constantes, não media, não contava nada, apenas sentia –,  visualizei a minha mãe (3 filhas), a mãe do Aluá (4 filhos) e a Maria (4 filhos) uma amiga que me acompanhou durante a gravidez com conversas sobre partos domiciliares. Imaginei a força de todas elas enfrentando seus partos. A coragem por ter passado por aquilo várias vezes. Parecia que não teria fim, que eu sentiria contrações pro resto da vida! Um jato de água quente sai de mim e me surpreende e dá um alívio de alguns segundos. Era a bolsa que tinha estourado. Eu sorrio e olho pro Aluá. Comemoro o desenrolar desse parto. Num piscar, médicos e residentes – eram mais de 5 - entram no quarto e se apresentam para dizer que precisavam usar um procedimento invasivo pra medir os batimentos cardíacos da bebê pois o que estavam usando, uma especie de cinturão, não estava funcionando. Eu não tenho forças pra responder, continuo a respirar, gemer, sentir. Aluá conversa com os médicos para questionar a intervencão, sinto um clima meio tenso entre eles, mas não tenho condições de me preocupar, as contrações eram muito intensas. Os médicos saem do quarto (quem acompanha/realiza partos sem risco são as parteiras), Aluá ajuda a segurar o cinturão para ver se funciona melhor, as parteiras – nesse momento haviam três – me encorajam e elogiam, dizendo que estava indo muito bem. Me levanto, fico na beirada da cama, enquanto tentam medir os batimentos, seguro forte nos braços do Aluá. Uma nova sensação surge junto às contrações, a vontade espontânea de fazer força, e a parteira confirma if you feel like pushing, you can push “se estiver com vontade de fazer força, faz, empurra", era o ultimo estágio do trabalho de parto que tinha chegado, o da expulsão. Uma delas decide ajeitar a cabeceira da cama, colocando-a na vertical, e diz let's get ready, it's coming “vamos nos aprontar, a hora está chegando”.
           Olhei pro relógio na parede, 8h45. Já? Fariam quase 3 horas que eu estava ali? Num misto de alegria e ainda muita dor, me posiciono com os joelhos no colchão, mãos e braços apoiados na cabeceira, recebo muito incentivo das parteiras “isso, empurra pra baixo, da pra ver a cabeça, você está indo muito bem”. E numa força fenomenal, sentindo uma queimação absurda, bola de fogo coroando meu canal vaginal, com um grito que me deixou rouca, a cabeca da bebê passa pelo canal e todas comemoram “na próxima contração você empurra bem forte para baixo, e o corpinho vai sair”. Já sorrio, como se o trabalho estivesse encerrado, dali pra frente era alívio, alegria, comemoração, bebezinho nos meus braços, sonho realizado, parto sem intervenções, meu corpo no comando, minha mente às vezes divagando e sempre ali na atenção, sem ter tido medo da dor, sentindo-a, tentando entendê-la, sem conseguir nem um pouco, sem drogas pra amenizar, com a liberdade dos meus movimentos, dos meus sons, do meu silêncio. E mais duas contrações, empurro, sinto como um sabonete que escorrega, me viro pra trás, está lá nos lençóis, Luara, minha bebe, bochechuda, enrrugadinha, amarelo-avermelhada, olhos semiabertos. Ela dá um pequeno gemido, me viro, sento na cama, pego-a em meus braços, beijo sua testa, agradeço pelo esforço, pelo nosso trabalho juntas, por aquele encontro tão almejado daquela maneira, Aluá emocionado fica bem perto, sorrimos. Ela busca o peito, suga, mama o colostro, todos rimos. Ele corta o cordão umbilical depois que parou de pulsar, Luara vai pros braços dele e e' hora de lidar com a saída da placenta. Tudo ocorre perfeitamente, não preciso levar pontos e as parteiras elogiam novamente, well done, you did really well!
          O que se segue nas próximas horas é pura euforia. Tomo banho, visto uma camisola, mando mensagens do celular, almoço com muito apetite, vou ao corredor tomar chá, as parteiras me cumprimentam, me chamam de yogamum, mamãe yoga, converso com os médicos que vêm examinar Luara que passa muito bem, passamos a tarde nessa mesma sala de parto, nós três juntos, sinto a adrenalina pelo meu corpo, bem-estar, vontade de caminhar, sorrir, agradecer. A ocitocina, nosso hormônio natural também chamada por muitos de hormônio do amor, inundou meu corpo para o trabalho de parto, e permaneceu em grandes quantidades para favorecer a amamentação, me sentia muito bem e feliz. Voltamos pra casa no dia seguinte e o que se desenrola no pós-parto, chama-se puerpério, a recuperação, o nascimento de uma mãe que achava que saberia nascer tranquilamente, uma bebê que provavelmente não sabia que tinha nascido, e tanta emoção que vale um outro capítulo dos últimos nove meses pós gestação, um dos períodos mais intensos de aprendizado e fragilidade ao longo desses meus 3anos de vida.

15 de Julho de 2019.

Regresso X

Chego com ela nos braços,
quatro meses se passaram,
ela agora com seis
volta pra casa onde nasceu
era quase inverno
a casa aquecida na rua escura e fria;
hoje e' primavera
tem flor cheirosa
dando um pouco de alegria
na nossa nova rotina
sem avos nem tias
nem primas
seguimos as duas
sempre a indagar
seria esse mesmo nosso lugar?
ela nao sabe, olha tudo
talvez estranhe um pouco
o silencio
eu como sempre
choro a melancolia
mas passo firme a cada dia,
temos passeio, parque na esquina,
jardim com lavanda, rosas e tulipas
sendo agora mãe, seja coragem,
seja colo, aconchego, ternura
e tudo se cura.

Regresso IX

de sol a chuva
de vento a tempestade
de mar a onda
de ceu a terra
de voar e aterrizar
de tudo e nada
a partida e a chegada
a semente lancada
a voz cantada
os amigos inteiros
os pedaços da vida
as estações que findam
o cordão que puxa
ligação que convém
o carnaval amem
em cada amanhecer
janela pro mundo
quintal da esperança
meu ventre se encanta
tem semente que cresce
nova vida acontece.

26.7.17

Desengano da vista**

Desengano não é ficção
nem ilusão
por uns instantes tudo vibra
a visão se ofusca
o sentir é pelo toque
e depois tudo desaparece
como se não existisse
as vistas enxergam
há delirio
e provocação.
Que gosto tem a liberdade
do tempo que passa
e nos engana com promessas não prometidas
e nos desencanta com o que não é palpável?
Nada à vista depois de carne e osso
fica a melodia,
a linha do intocável
se distancia.
No peito o sopro permanece
mas num lento piscar se esvanece
desengano da vista,
de olhar que desvia
de sonho que cria outros sonhos
de repente outras vidas se pré-anunciam
as mãos seguem firme no swing
tocando conforme a música
o engano nunca é do coração
de quem seria?
Não há engano
nem equívoco
é fogo
que uma hora se abrasa
o que renasce tem vida própria
feto de um amor profundo
e outros amores que virão
clarão nas vistas
desacerto que vira acerto
um tal de seguir tranquilo
Sempre seguir.

Inspirado no som Desengano da Vista de Pedro Santos por Bixiga 70.

23.3.17

Regresso VIII

para continuar e' preciso partir
e' necessario seguir adiante
provocar a dor, senti-la
olhar como se pudesse acaricia-la
coloca-la no colo,
dormir e acordar com ela,
saber que esta' ali,
nao por muito tempo
nem por tao pouco
mas que sua presenca e' o que alimenta,
que nutre os sonhos do que estao por vir
regressar e' um eterno pesar
que busca se libertar
do que nao parece possivel
do que soa irreal
e' um movimento que se repete em ciclos
desgarrando-se de conforto
de conformismo,
lancando-se em confusao,
conflito
para entao poder colher
mais uma vez os sonhos que virao.

11.9.16

My foolish heart**

my foolish heart is again trapped
begging for the same sort of desires

when the night falls entirely
it pulses frankly as a freak addict

only when the day aspires
my foolish heart is asleep and tired

then forgets what it has been like
to be confined to laughter and cry

constant craving for a pause to relish
my foolish heart is indulging in fantasy

becoming exhausted and lost in hallucination
it's not a disease subject to interpretation

my foolish heart just wants to be jazzy.

Inspired by Victor Young's tune "My Foolish Heart", Ahmad Jamal & George Coleman's version.









31.8.16

Lonely girl**

she is sitting
the world doesn't exist
the window is open
warm breeze brings her emptiness

she is breathing
the earth doesn't hold her
the door is shut
warm air carries her blessedness

she is inert
the fields are denuded
the footpath's just disappeared
green leaves blew her conscienceless

she is a lonely girl
there's no nuisance
no real hassle
solely peace in abundance.


Inspired by Dorothy Ashby's tune "Lonely girl"

26.8.16

Embraceable you**

Here on the far shore
a mirage is what appears
on the horizon of my eyes;
the intersection of sea and sphere
in a curved line
enfolds my shoulders
and I feel in safe hands
as free as waves
coming and going,
rolling unceasingly
in a kind of blue
as clear as the water
as infinite as the sky
as tender as the far away
embraceable arms
that carry me now.

Inspired by Georgie Gershwin's tune "Embraceable you" (Wynton Marsalis version).

25.8.16

Lonely fire**


tiny sparkle of light
there you are
refulgent inside your flame
that burns meticulously
inch by inch
there's nothing left
that could not be reached
your solely singular radiance
reflects upon surfaces
that surround you
it doesn't really matter
you seem lonely
as your luminance vigorously
widens the whole site

what incinerates
right inmost
belongs to you,
lonely fire:
image that coils
smoke that arouses
heat that emanates
all in you, lonely fire
coruscates far beyond.

**inspired by Miles Davie's tune "Lonely fire".


28.7.16

You've got to have freedom**

Leave

cry to the earth
then to the sea
laments that open your way
dig tunnels beneath your ground,
the soil that carries your soul
your furniture
all that you need to feel safe

then

Leave

shout out your groan
creak the timber under your feet
the sob that clears your lanes
make space for what needs to be born
your persuasion
the legacy you carry to feel sane

so

Leave

the past, the future
the so many choices
the not so possible ones
release what you don't wanna lose

Leave

just go
you've got to have freedom
an irreplaceable treasure
for you to take and also

Leave.


**Inspired by Pharoah Sanders tune "You've got to have freedom".





15.7.16

Smooth as the wind**


your breath next to my ears
smooth as the wind
your hands on my neck
soothing as the silk
your eyes gazing at me
serene as the night fall

make me peace and then war
sudden quiet storm
above our heads
brassy and chilled
rays of all colors
that relentlessly disappear

don't abandon all that's yours inside me
don't embrace me only under a gray sky
whisper in my ears more than a love song
calm me down as if you know how.

**inspired on Tommy Flanagan tune "Smooth as the wind"





22.6.16

O cliente

Emprestou o que era amor e dor,
os importou de um lugar longíquo
onde o horizonte era largo e azul escurecido.
A que serviu o empréstimo, não soube bem dizer;
se a delirar a prestações
se a tentar escapar de estimado juros
se a liquidar o que a vontade cobiçava
se a parcelar a imagem que reaparecia.

Por quais meios se fizeram a importação destes bens
nada se sabe alem, somente que alguém se beneficiara
do que se dera, do que fora, do que já era;
viera de um lugar remoto
onde o mar se perdia de vista.
Os bens puderam ser avaliados,
tiveram apreço, logo porem desconcerto,
quiseram devolução e troca
e nada se pudera fazer.

De amor e dor
mais um cliente se recompõe.


O cliente

Emprestou o que era amor e dor,
os importou de um lugar longíquo
onde o horizonte era largo e azul escurecido.
A que serviu o empréstimo, não soube bem dizer;
se a delirar a prestações
se a tentar escapar de estimado juros
se a liquidar o que a vontade cobiçava
se a parcelar a imagem que reaparecia.

Por quais meios se fizeram a importação destes bens
- se bens tão primários se manifestam no ato de parir -
pois alguém se beneficiou do que se dera
do que fora, do que já era;
viera de um lugar remoto
onde o mar se perdia de vista.
Os produtos puderam ser avaliados,
tiveram apreço, desconcerto,
quiseram devolução e troca
e nada se pode fazer.

De amor e dor
mais um cliente se recompõe.


Saudades de minha mãe

saudades de minha mãe
minha cantiga favorita
de amor, cozinha, sal
mãos bentas
olhar que abençoa
que dá ternura
que afaga o coração

saudades de minha mãe
minha ídola preferida
de compreensão, travesseiro,
cama, sofá e sonhos
ombros caridosos
que dão aconchego
que acarinham a alma

saudades de minha mãe
minha amiga certeira
de partilha, caminhada,
praia, pedra e sol
pés que dão apoio
que carregam a solidão

dessa saudade.

6.6.16

Alta Marea**

Pietro è scattato a parlare
Lui, il villaggio e la riva del mare
Il mio villaggio
Porta incertezze ai suoi Orishas
Alta marea
Temere nuotare
Come temere l’amore
Gli gira la testa
Si accorge che
frontiera non ce n’è.

Pietro sulla riva ha ricominciato a parlare
Porta incertezze al suo Orisha
Insiste
L’acqua salata non fa calmare
Fuggire
Temere nuotare
Perchè annegare
Gli gira la testa
Gli da fatica
Non c’è maniera.

Rinascere
Ritornai ad essere
Divenni  l’essere
Ricominciai ad essere
Lui galleggiava e temeva affondare
Porta la richiesta al suo Orisha
La mia legge
Lui, il villaggio e la riva del mare.


*Canção original de Fernando Machado "Preamar" traduzida para o italiano em Maio 2016.

2.6.16

SONANT*

The essence
What's the essence?
What's the essence of what you create?
Search for it.
Search for it out there
Search inside

Inside?

Inside where your beliefs are
Inside where your feelings grow
Inside where body meets soul

Body meets soul

A meaningful encounter
A resonant encounter
A sonant encounter

Sonant.

*written for the musical SONANT.

1.6.16

futuro do pretérito condicional

o que seria de mim se não fosse o canto
o que seria de mim se não fosse a dança
de mim o que seria o encanto se não o fosse
de mim o que seria a criança se não a fosse

senão a poesia, o que me manteria
senão o movimento, o que me restaria
me habitaria o que, senão a euforia
me residiria o que, senão o intento

não fosse a paixão, o que em mim nasceria
não fosse o desejo, o que em mim cresceria
a criação se não fosse, afloraria em mim o quê
o festejo se não fosse, brotaria em mim o quê

se arte fosse o que não surgiria, quem então
se música fosse o que não despertaria, quem então
de mim, a palavra que não fosse se partiria
de mim, o ritmo que não fosse se perderia

o que de mim deslizaria senão água, suor e lágrima
amor líquido, gota após gota sobre mim, a estima
esse amor, que por mim sempre pedira
viria, o via
ia, o veria
veio, o vi.












11.5.16

But beautiful*

But beautiful is to breath

uncover what is underneath

the timeless motion of a belief

all you can grip is a gift

and above all comprehension

yes, your boat is adrift


But beautiful is the singularity

of all space between words and their peculiarity

the everlasting roll full of whimsy

all you can be affected by makes a shift

on what you intend and then

yes, some authentic relief.


**Inspired by Freddie Hubbarb's tune "But beautiful".












10.5.16

Repost AR

tempo é vida.

tempo não é o que vai passar, nem o que vai chegar
tampouco é o que já passou

tempo é o que se respira
no momento em que o pulmão se enche de ar

falta tempo pra fazer um verso
falta tempo pra aprender a dançar
falta tempo pra visitar quem se ama
falta tempo pra cozinhar comida fresca

falta-lhe tempo? é porque nem se deu conta de que tem ar pra se respirar no seu andar

leva tempo pra curar um machucado
leva tempo pra construir uma casa
leva tempo pra fazer um amigo
leva tempo pra ir à pé

leva-lhe o tempo? o tempo que leva é o tempo que se tem pra se viver o que se queira

caso não queira, deixe o tempo passar
caso o tempo passe, culpe o tempo que passou
caso não viva, esqueça o tempo

tempo é vida.

vida é o tempo que temos para respirar - sem demora, sem pressa
no tempo em que o pulmão se enche de ar - e depois o solta.