quem sou eu

16.10.10

Paradeiro

Rumam todos
ao ponto mais alto
do centro da terra,
cesto de mantimentos
equilibrando-se na cabeça,
filhos acomodados nos panos
amarrados pelo corpo
na curva do cocix,
no calor do ventre,
no macio do seio materno
na cela do pescoço alongado do pai
outros filhos maiores vão caminhando
também carregando suas ninharias,
poucas roupas e algumas palhas
nas quais dormem.
não carregam espelho nem brinquedo,
sapatos nem bolsas
vão soltos, mudam de paradeiro
quando a seca chega e a chuva desaparece.
O céu, mesmo ausente de gotas,
 permanece esperança;
talvez pelo azul, talvez pela infinitude.
O trajeto é longo. Vão-se dias.
a paisagem muda de cor
e quanto mais o verde se aproxima,
mais cresce a alegria de saber
a saga chegando ao fim.
Na beira de uma lagoa feita de chuvas passadas,
acomodam suas tendas, seus barros, suas pedras.
Estão a salvo até a seguinte estação
que antecede a seca.
Depois seguem, na vida não se pode parar.

12.10.10

Fly, fly high butterfly

Um batalhao inteiro de homens diz estar sofrendo.
Será que os homens estão mais sensiveis? Ou sofrem com a constante opressão feminina?
Gente! As mulheres oprimem seus homens. Eu já vi. Elas saem de dentro de casa, com passos apressados ao encontro deles, e quando os veem numa mesa, conversando com outras mulheres, ficam furiosas e chegam bufando, apesar do sorriso sinico, dizendo qualquer coisa do tipo: "nossa, mas eu queria ter só um pouquinho do meu homem pra mim, há horas que o estou procurando" - e virando-se para o tal, logo acrescentam: "Você pode me dar atenção ja que eu vim até aqui te ver, meu amor?".

Que cena. Se eu tivesse nascido homem, ia chutar o pau da barraca. Se elas ficassem furiosas por uma besteira qualquer, eu faria questão de deixa-las ainda mais furiosas, ignorando completamente qualquer manifestação de egoismo e ainda por cima disfarçado querendo parecer doçura feminina. Encontrar uma mulher equilibrada, normal, que não precisasse se agarrar aos seus medos para proteger a sua presa seria uma saga muito interessante. Saberia reconhecer desde os primeiros movimentos a loucura quase esquizofrênica de um olhar em busca de pra-onde-esta-olhando-meu-namorado.

Outro dia eu fui sugada com um esses olhares. Que unpleasant, deselegante, desconfortável, insuportável. Fui embora da balada porque aquela mulher tava me tirando do sério. Vai ver que ela desconfia que o homem dela me olha com o olhar de quem gosta de olhar profundamente, mas que culpa tenho eu se ela é assim pra sempre louca, como muitas outras? O que quase me trucida é o sorriso mediocre, a vontade de demonstrar simpatia enquanto vemos sua face corar de ódio.

Pode ser que algum dia eu descubra a pilula do não-refletir no espelho. Acho que sou um espelho. Vejo exatamente as pessoas como são quando me olham. Vejo tudo, meu espelho as reflete e no silêncio absorve tudo que elas exibem quando à minha frente. Já viram, por acaso, tantas mulheres fazendo pose de esnobe, sensual, aborrecida, choramingosa, doce, alegre, todas essas e outras expressões na frente do espelho? Normamente elas fazem isso quando não há ninguém por perto, assim podem descontar - no espelho - o que lhes está dentro. E aquela moldura que está sempre ali, vê a tudo e todos caladamente....

Minha moldura quer desprender-se lentamente do espelho que nela habita. Preferia ser uma borboleta, que sai voando, nota poucas coisas ao redor, percebe flores, escapa dos sapos. Hoje na escola fizemos borboletas de origami com as crianças. As mães estavam ajudando. Quando terminadas, perguntei se sabiam cantar uma musica sobre borboleta na lingua delas. Ninguém sabia nenhuma cantiga.O que é isso minha gente? Não houve por acaso uma alma pueril a cantar pelas borboletas nessa lingua? O que as mulheres ficaram fazendo na vida que não criaram canções sobre as borboletas para suas crianças?! Me restou ficar repertindo assim de improviso: Fly, fly high butterfly....

11.10.10

Cenas ao redor do fogo num país da Europa

Ontem à noite, ao redor da fogueira, entre baixas melodias que as pessoas cantavam, uma breve pausa entre um comentário e outro, alguns diziam-se hipnotizados, outros riam baixo e permaneciam calados; entre o prazer de ver os olhares brilharem com o calor do fogo, apareceu um cara alto de ombros largos e barriga saliente, com uma camisa xadrez vermelho e preta, com um copo de cerveja heinekeen na mão, dizendo:
"A fogueira é que nem televisao. Fica todo mundo horas sentado olhando pra ele e até esquecem da vida. Pra mim, o fogo é uma televisao, infact". Nisso, eu que já cutucava a lenha, posicionando melhor os galhos pra que o fogo nao cessasse, disse:
"Discordo. Aproxime sua mao do fogo e da TV e veja o que você sente. É bem diferente!"
Ele disse que sim, claro, aquilo era evidente. Mas o que ele queria dizer e que não foi muito bem expressado, era que antigamente as pessoas contavam histórias em volta do fogo, quando ainda não havia luz elétrica e as pessoas ficavam ali paradas, olhando e ouvindo. E hoje em dia, as pessoas continuam paradas olhando e ouvindo histórias que vem da televisão. Então ele complementou: "Eu mesmo ficaria horas aqui, que nem quando assisto TV" e eu que ja tinha ido buscar outra lenha mais ao fundo do quintal arrematei: "Eu fico horas aqui e nem um minuto assistindo TV, por isso nao concordo com voce".

Ninguém na roda quis efetivamente que aquilo virasse uma discussão. Ninguem quis se aventurar a dizer o que era melhor, que tv era uma merda, que no passado as pessoas eram mais livres para se expressarem na frente do fogo, as histórias aconteciam porque as pessoas se manifestavam, não porque o fogo lhes contava historia. Ninguém rebateu aquele comentário inútil, que aliás nao passou de um comentário, como deveria ser e eu que queria suscitar uma contrariedade a um pensamento estreito, logo acabei na risada irônica silenciosa que me restou rir.

Nessa mesma roda ao redor do fogo, haviam pessoas de outros paises. Ali´ss, esse cara de camisa xadrez não era da minha nacionalidade. Certo tempo depois de mais cantorias, risadas, vinho, amizade, eu desabafei o quanto poderia ser dificil naquele momento falar uma outra lingua, já que me sentia tão conectada com o fogo da terra, que parecia o da minha terra. Nesse momento, senti o olhar de sensura do meu companheiro. "Não diga essa blasfemia", pude ouvi-lo em silêncio. Oras, eu só queria me expressar com pessoas que tambem falavam a minha lingua e que poderiam ter sentido o mesmo. Calei-me. Ainda alguns minutos depois, a anfitrian da festa entoava versos e agradecia os aplausos, claro, numa lingua comum a todos. Após uma das inumeras cantigas que interpretou, virou-se pra mim, e disse: "Agora é a sua vez de cantar, que musica você escolhe?" Respondi: "Cantei muitas aqui enquanto você não estava, agora só canto quando todos cantam juntos". Imediatamente ela franziu a testa e reprovou-me "Why are you speaking in portuguese?!"

OH! suuuugar! Me deixem falar a minha lingua pelamordideus! - pensei mas nao falei. Talvez o fogo tivesse suscitado alguma selvageria dentro de mim, algum bicho adormecido que precisava esbaforar o calor de dentro. Ao final de tudo isso, antes que o vizinho reclamasse do barulho -quase a uma da manhâ - minha amiga, sentada ao meu lado, aproximou-se de minha orelha e me disse: "Olha só que engracado, enquanto nós que estamos sentados perto do fogo (do lado esquerdo onde a fumaça nao vem), estamos tão relaxados que parecemos estarmos nas nossas casas de praia com quintal,  o pessoal do lado de lá (lado direito, todos em pé cercados por um murinho, pra onde a fumaça ia) está todo tumultuado como se tivessem dentro do apartamento deles, achando que a vida é normal e legal assim. Que sorte termos nossas casas de praia!" e soltou uma gargalhada. Pena ela nao estivesse presente na hora do comentário infeliz do cara da cerveja heinekeen, nem no fora que tomei por falar a minha lingua. Uma gargalhada dela em qualquer um daqueles momentos teria sido incrivel...pra descontrair assim, quebrando o gelo, coisa que nem o fogo foi capaz de fazer.