quem sou eu

28.10.08

metade nuvem, metade azul

A cidade tinha se tornado uma massa pesada, uma "mansidão",como diria uma amiga, condensada de falta de tempo e humor, pressa, fumaça, nóia, cheiros e mau-cheiros, publicidade e papéis, jornais rasgados, latas de cerveja. A cidade para mim estava mais pesada que a vontade de suportá-la. Compramos a passagem e fomos rumo ao interior, não importava onde, eu queria apenas ver a estrada, o horizonte, os campos verdes. A saída da cidade já foi divagante, o ônibus fez um caminho ao redor do maior parque da cidade, o tal do Hyde Park e do andar de cima do ônibus vi o tapete de folhas esparramadas pela grama e pelas calçadas. Adoro o outono na Europa, as ruas ficam cheias de folhas marrons esvoaçantes, parece que a calçada ficou doida varrida, as folhas estão dançando com o vento e fugindo de vassoura, uma beleza de carnaval que arrasta o que estiver na frente. No parque, árvores marrons, amarelas, avermelhadas sob um céu de nuvens. Mansidão.
Na estrada, lentamente no afastar da cidade as nuvens foram ganhando cores de tom azulado. No percorrer do trajeto um feixe amarelado começa a surgir por detrás dos aglutinados esbranquiçados. Estava olhando os campos, sabia que no interior desse país os campos seriam assim, com gramas tão verdes que parecem uma pintura impressionista, com poucas ovelhas e vacas pastando. Olho pro céu novamente e lá está a divisão de um céu carregado de nuvens e um céu límpido e azul. Esfrego os olhos, miro novamente; a divisão de céus é absurdamente comovente, chega a parecer forças do bem e do mau, o inferno e o paraíso, como bem descritos nos capítulos do antigo testamento. Mas dessa vez parecia que o mundo estava dividido em dois e que o ônibus cruzaria a linha.
A medida que avançava na estrada, os raios de sol iam surgindo um a um, delineando um brilho nos fios de cabelos dos passageiros que estavam sentados do lado da janela. E num piscar de olhos a luz amarela invadiu o onibus num jato dourado, estávamos atravessando o mundo de nuvens para o mundo de céu azul. Eu estava perplexa e comecei a agradecer deus por aquilo. Eu pedira o horizonte ao longe dos campos verdes, na amplitude sem margens. Ele estava me dando o sol, que aparecia tao enigmaticamente como tantas revelações na vida. Olhei pro lado, meu amor dormia e mais adiante tinha um rapaz, um rapaz que eu já tinha olhado antes porque ele estava muito arrumado, com sapatos de couro marrons, combinando com um cachecol também marron, um casaco aveludado e uma bolsa de couro, daquelas de antigos escritores de filme. Ele não ia pra uma festa, provavelmente estaria indo à universidade (como tantos por aqui). Me deparei com a luz do sol refletida nos olhos claros dele e sua cabeça levemente erguida pra ver a paisagem, porque ele estava sentado na fileira do outro lado do corredor, sua janela nao dava pro horizonte. Pude notar seu encantamento pela paisagem que se derramava diante de nossas visões e naturalmente um sorriso apareceu em sua face. OLhei mais ao redor, uns dormiam, outros escreviam no laptop, outros liam. Somente eu e aquele menino olhávamos pro espetáculo. Somente eu sabia o significado daquilo pra mim naquele momento.

22.10.08

Atrás da conversa

"Sinto que ele está triste" - disse Amalia. "Faz dias que não me olha nos olhos, não tem sorrido muito, a cabeça cabisbaixa pelos corredores da casa. Quando entro no quarto ele está jogando video-game, coisa que nunca faz, só quando nao tem nada pra fazer".
Ariela continuava a fitá-la, ouvindo-a atentamente. Então prosseguiu "Eu acho que ele está descobrindo. Está percebendo que talvez eu não seja a mulher que ele tanto desejou, porque eu nem provoco mais desejo nele. Há um mes estamos sem transar, voce sabe o que é isso?" Ariela desviou o olhar de Amalia para o clarão que desapareceu no chão do quarto, mais uma nuvem tinha vindo cobrir o sol. "Simplesmente não sabemos como despertar o prazer erótico um no outro" Continuou a dizer com palavras e mãos articulando. Deu uma pausa e uma longa piscada. "Nao sei se eu devo insistir. Toda vez que estou nua diante dele, parece que meu corpo não tem vida, cada parte é a mesma num todo, nada vibra, nada se aquece, nem um pedacinho de pele. As poucas vezes que ele me beijou eu não o desejei e logo ele parou de me beijar."
"Voce tentou dizer a ele que queria ser tocada de outra forma?" quis saber Ariela. Olhou para a janela, viu a sombra da árvore que vinha de fora e balançou a testa "Falamos algumas vezes sobre isso, mas eu não gosto muito. O que vou ficar repetindo? Meu amor, eu te amo mas voce nao me dá tesão? Oras, ninguem quer ouvir isso Ariela, eu sei que ele também não quer. Eu teria que chegar com a solução nas mãos, te-las na bandeija e serví-lo, mas enquanto eu não o oferecer isso, ele vai repetir a mesma coisa das outras conversas, que o prazer deve ser uma coisa espontanea, que um corpo saudavel sente prazer, que eu deveria ir procurar ajuda..." Suspirou.
Ariela então continuou. "Olhe, mesmo assim, isso não justifica o teu silencio. Voce tem que falar, tem que dizer o que quer e que não quer, o que gosta e o que não gosta. O pior numa relacao é a falta de comunicação, seja pras coisas positivas quanto pras negativas. Desse silencio pode virar um deserto e voces podem se chatear muito mais que se tivessem conversado. Um deserto pode matar tanto de frio quanto de calor. Tanto de seca quanto de vento."
Amalia mordeu os lábios, franziu levemente a testa, olhou pro teto. "Eu queria deseja-lo. Eu queria que ele me tocasse e fossemos à loucura. Eu não posso mais viver pensando que eternamente seremos mornos, casados com uma vida sexual estagnada, eu não posso me repetir isso todos os dias." E virou bruscamente a cabeça para o lado, em desaprovação. "Então mexa-se Amalia. Diga, grite, esperneie, faça qualquer coisa ou destrua seu casamento, deixe-o morrer lentamente e veja todos os dias um olhar que não te fita porque perdeu a confiança. Não confia porque não ouve sequer a verdade. Esclaresce amiga, isso é importante, ou voce quer continuar a ve-lo entristescer cada vez mais?" A pergunta ficou ressoando como um eco nos ouvidos de Amalia. Dentro de si, sabia perfeitamente que não queria ve-lo sofrer, mas que estava fazendo como se estivesse de olhos tapados, fingindo nao enxergar que ele sofria, e muito. "Tens razão. Vou dizer, nao sei bem como começar e nem sei no que isso vai terminar, mas ser fiel é ser verdadeiro."

Abriram a janela e foram ver o sol que voltava a aparecer por entre as nuvens.

17.10.08

Far from home II

far from home
that's the music she sings alone
passing through tones
finds her way back in a song

far from home
is where her heart is
miles distance beating
nowhere willing to go

far from home
she watches the life along
crossing borders over the years
sailing grounds of missing owns

far from home
she dares to live
and to hopefully sink and drown
cold blames in the water flows.

10.10.08

Oleo de mirra com gergelim

Subiamos as escadas de madeira, daquelas que precisa das maos pra dar empulso, os degraus eram distantes um do outro, era preciso segurar firme com as duas maos, uma de cada lado e um pe por vez apoiava no fino degrau e depois o outro. La em cima estava a palha estendida, alguns vasos, pedras, incensos, velas, umas pecas em madeira talhadas a mao, alguns livros sobre astrologia, calendario maia, heiki, medicina chinesa. Da janela de vidro se viam duas torres e o telhado de uma outra casa. O sotao fora construido para ele que queria ficar perto do ceu, no seu oratorio, recebendo a energia do alto. Quando subiamos ali, ficavamos suspensos em algum universo longiquo, nos transportavamos para alem da atmosfera, em alguma camada celeste. Nossa voz baixava de volume enquanto nossos ouvidos ficavam mais sensiveis para escutar a respiracao um do outro, que ia se tornando lisa, serena, profunda. Quando suspiravamos, alguma mao ja tinha procurado tocar em qualquer parte do corpo do outro e quando quem sentia ja se amolecia, relaxando no toque, o outro dizia, "pegue o oleo de mirra com gergelim".Estava iniciada a massagem. As maos de um que percorria os caminhos de veias, musculos, ossos, cavidades, todos sendo massageados com dedos atentos a cada pequena parte do corpo do outro, a cada reacao que certos pontos equivalentes a outras partes do corpo nos pe's ou nas maos provocada. Ficavamos horas, soltando algumas palavras, oras exprimindo reacoes prazerosas, oras dores que se desmanchavam nos dedos do outro, as vezes alguem dava uma risada boa, de alivio ou de deleite. Depois de um longo tempo, fora de qualquer cronometro, um tempo imaginario no qual ambos nos deixavamos levar pela sensacao provocada, e um suspiro em agradecimento era seguido de um sorriso que nao saia do rosto, ficava por entre os olhos, na face iluminada pela luz alaranjada da vela ou por algum raio de lua que vinha de fora. Assim permaneciamos aquecidos pela branda energia que disseminavamos mutuamente, cultivando um calor que nascia no peito e se espalhava pelo corpo e pela mente, como uma onda propagando suas moleculas sem cessar. Nos agradeciamos num abraco ainda com os joelhos sobre a palha. Quando era o momento de descer davam um longo suspiro e sabiam que tinham que voltar pra terra, mas voltavam flutuando, pisando em folhas de flores que brotavam de seuas coracoes.

6.10.08

Presentes e presencas

O bar nao era um bar qualquer. Do lado de fora dava pra ver uma luz amarelada e uma porta verde dando pra um pequeno jardim. Ao aproximar-me da porta, ouvi o som do piano, macio, percorrendo as teclas numa noite fria e azul. Entrei no bar e um cheiro de comida casieira invadiu as narinas, junto com um vapor de ambiente quente, "pretty warm", como dizem os ingleses. Cheiro de ervas e temperos, adocicados, levemente picantes. Dei tres passos e a musica acabou, olhei a pianista de soslaio e logo vi seu sorriso em agradecimento às palmas. Ela vestia uma meia-calça colorida, com uma saia acima do joelho e uma botinha de camurça. Nos demos um abraço e ela logo voltou ao seu banco para tocar outra musica, mas antes me apresentou sua mãe, uma senhora de cabelos brancos encaracolados, finos e esvoacantes. Ela acabara de chegar de viagem de Israel, tinha feito 4 horas de avião, mais duas horas de transito da cidade até o aeroporto. Estava com os olhos cansados, no entanto sorria pausadamente. Olhava a filha tocar piano. Fazia 9 meses que mãe e filha não se viam. Conversamos sobre o tempo em Israel, ela disse que estava calor, enquanto aqui a temperatura cai a cada dia, com vento frio e garoas constantes. Ela me perguntou se eu não gostaria de ir a Israel um dia, e eu respondi que sim, mesmo sem nunca ter pensado muito nisso efetivamente. É engraçado como a vida vai tecendo seus fios e de um momento ao outro você passa a pensar em lugares que nunca lhe trouxeram outras informações a nao ser as mesmas que a midia nos apresenta. Mas de repente você passa a conviver com pessoas de um certo pais, voce ouvê suas linguas, experimenta sua culinaria, ouve suas musicas, observa seus comportamentos.
"Ha mais instrumentos embaixo da mesa" me diz a pianista. "Toque-os quando quiser". Após um suco de limonada rosa, especialidade da casa, me levantei e fui ao lado dela com leves instrumentos percussivos comecei a acompanhá-la e logo estávamos entretidas tocando musica folclorica israelense e depois, com outros musicos que chegaram, tudo virou samba. A noite foi bonita, cheia de sorrisos e palmas. De vez em quando eu lembrava de olhar pra senhorinha e via que ela estava com os olhos semi-cerrados, num cansaço que dava pena de ver!
No dia seguinte acordo e recebo uma mensagem da pianista, agradecendo a minha presença na noite anterior. Eu é que tenho agradecido a presença dela na minha vida.

4.10.08

Pela rua

Passei o dia em casa sentada na frente do piano (nao e' um piano de verdade, um teclado que faz parecer) e em cima dele estava o computador, e nas telas eu procurei as musicas que quero cantar, enquanto no piano brincava com os tons e semitons das notas sendo transpostas pela voz. Finalmente estou descobrindo as notas dentro da minha propria voz. Parece magica, parece magia. Fiquei horas, saltanto de uma musica pra outra, encontrando versos dentro da melodia.
O tempo mudou. Talvez tenha mudado a estacao com a vinda de um vento frio e incessante que carrega nuvens cheias e passantes. Eu desviava o olhar do piano para a janela e via as folhas de uma parreira em cima do muro dancarem uma danca sem fim, movimentos continuos e aleatorios. No fim da tarde decidi ir a padaria e caminhando pela rua senti a garoa fina no cabelo e no nariz. Me lembrei que estou num outro pais, vivendo uma vida nova cheia de lembrancas da vida no meu pais, na minha casa, com os meus amigos querendo me ligar a qualquer hora, fazendo alguma visita deliciosa, buscando inventar algum passeio, algum show instrumental gratuito, comer uma pizza na pizzaria barata onde o garcon te trata bem. Sempre a lembranca de qualquer situacao imprevista,dos elogios e agradecimentos por ter o amigo por perto. Mas andando sozinha na rua, lembrei-me da sensacao de estar em outro pais, onde as situacoes tambem sao imprevistas porque voce sabe que aquele amigo nao esta' la' pra te ligar, nem vai encontrar sua mae de touca de banho cozinhando os legumes, esperando o tempo da tintura do cabelo. A sensasao nao e' essa, e' outra, e' tambem meio poetica porque o frio naturalmente traz instrospeccao, maos guardadas nos bolsos dos casacos longos e acolchoados. Parece que voce esta' sempre precisando proteger-se, aninhar-se num casulo quentinho, buscar calor dentro de voce mesmo e na sua casa que nao e' tao sua ainda, porque e' nova, mas que ja contem sua energia.
Em pleno sabado a noite, eu nao tenho a euforia no peito de saber que vai ter festa e eu vou sair pra dancar com meus amigos preferidos, nem vou comemorar o aniversario da mulher que eu mais admiro na vida, ela esta' longe, trabalhando pra poder vir pro outro pais e conhecer a sensacao de que tanto lhe falo. Se eu tivesse um cigarro, fumaria enquanto caminhava, e em casa tambem fumaria na frente da chamine' com uma xicara de cha.
O frio esta' trazendo calma e quietude. A mente comeca a perceber que o tempo vai passar mais devagar e isso vai ser bom pra nao ver a vida passar tao rapido, como acontece na maioria das vezes. Talvez seja tempo de compor, de descobrir pequenas coisas, de inventar historias e de sentir o coracao bater. E de escutar mais uma vez o que Chico gosta de dizer.

"Eu vejo aquele rio a deslizar
O tempo a atravessar meu vilarejo
E às vezes largo O afazer
Me pego em sonho A navegar
Com o nome Paciência
Vai a minha embarcação
Pendulando como o tempo
E tendo igual destinação
Pra quem anda na barcaça
Tudo, tudo passa Só o tempo não"

2.10.08

Ana Terra

Nao fale muito da tristeza que assola o peito, chore as lagrimas de dor, elas precisam escorrer como um rio caldaloso em direcao ao mar, com toda sua furia, com toda sua correnteza, rolando pesadamente sobre a pele macia do teu rosto. Tua face ficara' marcada por todos os sentimentos ruims que por ali passarao e penetrarao em cada poro, deixando um furor queimando de leve as linhas do teu semblante feminino. Desde crianca percebi que chorar e' fazer uma limpeza profunda, que traz toda a vermelhidao do sofrimento e estampa nos olhos tantas impurezas trazidas`a tona. Uma amiga me escreveu que esta' submersa num mar de lagrimas que ela nao chorou e por isso se sente sufocada, a agua dentro provocando um maremoto enquanto a agua colocada fora transborda, escoa, vai sendo transformada ate desaparecer. Transparecem os medos, os desejos perdidos, as ilusoes de todas as noites nao dormidas, as vontades intocadas, a falta de coragem, os receios dormindo na sua cama aconchegante, sem nunca quererem acordar e sair de perto, a culpa que cutuca, a duvida que julga o pensamento do outro, a falta de fe', de animo, de energia pura, de confianca, a cegueira. Tudo transparece em todas as lagrimas que milagrosamente brotam como agua da fonte, sem cessar, durante dias ou noites, tardes e fim de tardes, na solitude ou na doce companhia de alguem que desperta tua sensibilidade de alguma forma.
Pra mim foi assim. Jorrei as lagrimas que nao mais podia, ate' sentir que tudo havia escorrido, que a lagrima havia tornado-se agua pura, como se filtrada apos ter passado tantas vezes pelo mesmo lugar. Nesse dia pouco me olhei no espelho, ou nem me olhei, porque nao queria ficar questionando a razao de tudo isso, de dores que vao se acumulando no peito sem nos darmos conta. Evitei o meu proprio olhar para que evitasse julgar-me como ha semanas vinha fazendo. Apenas o choro e tudo o que nele continha.Apenas o choro regando a terra.